O
devido processo legal não pode ter uma vinculação com o estrato social
da pessoa que está sendo julgada. Esse princípio, porém, tem sofrido uma
distorção no Brasil, do qual o processo do mensalão dá provas. Quem
afirma é o professor da Universidade de Coimbra Rui Cunha Martins. “O
processo do mensalão é a grande oportunidade que as populações cansadas
de tanta desigualdade têm agora do revanchismo, da vingança. E o sistema
jurídico aceita fazer esse papel”.
Professor visitante de
programas de pós-graduação e membro de grupos de pesquisa em diversas
universidades brasileiras e espanholas, Martins tem como foco de
trabalho investigar confluências entre a Teoria da História, Teoria do
Direito e Teoria Política, áreas em que orienta trabalhos de mestrado e
doutorado. As linhas de pensamento mais presentes em seus trabalhos são a
problemática da mudança política e da transição, a problemática da
fronteira e da estatalidade e os regimes da prova e da verdade. No
Brasil, as ideias foram explicadas nos livros O Ponto Cego do Direito: The Brazilian Lessons e A Hora dos Cadáveres Adiados, lançados no ano passado.
Para Martins, ao relativizar a importância das provas e justificar entendimentos com a repercussão que o resultado do julgamento teria em outros casos ou na opinião pública, o Supremo admitiu a participação de um elemento informal na técnica de decidir: a pressão social. Pressão essa que, segundo o professor, se volta contra a corrupção como se ela fosse a causa dos problemas sociais e econômicos do país. Em sua opinião, porém, esse tipo de pensamento tira o foco de um mal ainda mais destrutivo: a incompetência de quem tem a obrigação de guiar bem a gestão pública. Em entrevista exclusiva concedida à ConJur, ele afirma: “Se os tribunais fizerem o papel da ‘limpeza’, se arriscarão a ser os faxineiros do serviço, os idiotas úteis”.
E ele é ainda mais assertivo. Diagnosticando o movimento, que com a postura do Supremo ganha força na Justiça, Martins faz um alerta. Diante do anseio em acabar com a corrupção colocando ricos e poderosos atrás das grades, há o risco de se questionar a conveniência de se viver em um Estado Democrático de Direito, que, por regra, não pode abrir mão do devido processo legal — princípio que, por natureza, pede o contraditório e é inimigo da pressa em julgamentos penais. “Devido processo legal não tem que ter uma vinculação ao estrato social da pessoa que está a ser julgada. Esse princípio tem sofrido uma distorção no Brasil. Tem havido um peso de punição, de prisões, de execuções, proveniente de camadas sociais”, afirma. “O Estado de Direito não é salvo cada vez que um corrupto é condenado. E não será salvo se prender pessoas que não deveriam ser presas. Dizer: ‘Eu também vou julgar poderoso’ não vai oferecer segurança às populações.”
O professor visitou a redação da ConJur em uma de suas viagens ao Brasil, que faz com frequência para dar palestras em universidades.
Leia a entrevista:
ConJur — O Ponto Cego do Direito: The Brazilian Lessons e A Hora dos Cadáveres Adiados foram duas obras recentes com análises sobre eventos na sociedade brasileira, como as manifestações de junho. Qual foi o objetivo?
Rui Cunha Martins — Há um objetivo especifico e um objetivo comum. O objetivo comum é o de tentar construir uma problemática, pensar assuntos que o senso comum nos coloca, problemas da sociedade atual, das sociedades contemporâneas e, sobretudo, da sociedade brasileira. De forma a construir o que eu chamo de uma boa problemática, tentar pensar em vez de tomar partido ou, de forma impulsiva, transportar nossas pré-compreensões para assuntos que são mais sérios do que elas. Minha intenção é sugerir vias reflexivas para problemas que o Direito coloca.
ConJur — Suas obras fazem uma distinção entre a forma legal e a forma política de ver.
Rui Cunha Martins — Meu trabalho se situa no cruzamento entre Ciência Política, Direito e História. É um trabalho situado nos interstícios, nas dobras, nas pontes. Um exemplo concreto na sociedade brasileira se refere às expectativas sociais criadas em face à decisão judicial. O megaprocesso do mensalão é a expressão máxima de determinados problemas que há muito tempo ocorrem na sociedade brasileira e nas relações entre o sistema jurídico e o sistema social. Estamos a falar de uma zona de fronteira, de passagem. É uma tripla fronteira, porque, além do sistema social e do jurídico, há interferência da mídia e, portanto, do sistema comunicacional também. O sistema comunicacional é hoje expressão do sistema econômico. A mídia é a tradução do poder econômico. Os grupos de empresas são grandes. É o motivo do título do meu segundo livro, A Hora dos Cadáveres Adiados. É uma procissão de cadáveres, na qual está o sistema jurídico, que é a parte sacramentada, a parte do rei do momo no Carnaval, do bobo, que está desacreditado. É também uma festa que não pode passar sem o sistema político, em quem todos batem também. Mas a prova de que todos fazem política é em relação aos juízes do Supremo. Alguns deles são apontados até mesmo como putativos candidatos presidenciais, ou seja, candidatos ao topo do sistema político.
ConJur — O Supremo Tribunal Federal é uma corte constitucional em que a política faz parte das decisões, até por conta da forma como deve ser composto. É razoável que ele decida estritamente com argumentos jurídicos?
Rui Cunha Martins — Não tenha certeza se se quer isso. Sim, há um senso comum jurídico, porque não há só o senso geral da rua, mas também o senso comum jurídico. Mas vimos que a pressão feita sobre os ministros a partir das ruas, do sistema social, é justamente o contrário. A exigência que é feita — ou pelo menos que a mídia retrata ser feita — pelas populações é a de que haja julgamento político. Ou seja, que se dê o sinal fortemente político no sentido, quase pedagógico, de excomungar o poderoso. O problema é como desempenhar uma função que também é política, mas não pode deixar de ser técnica. E aqui já estamos quase a falar na teoria da democracia, no lugar do Direito nas sociedades democráticas, do Estado de Direito. Como uma decisão pode ter em conta as expectativas sociais?
ConJur — E qual é a resposta?
Rui Cunha Martins — Essa foi uma questão presente, por exemplo, no mensalão, em relação aos Embargos Infringentes. Até que ponto há obrigação do Direito em dar resposta às expectativas sociais? Isso é preocupante. É preocupante pensar que as expectativas sociais a respeito do Direito e do sistema jurídico sejam interpretadas no sentido de que o ruído da rua deve ser levado em conta pela decisão judicial. Penso que, no âmbito do Estado de Direito, não pode ser levado em conta. Não é dessa forma que se assegura a certeza do Direito.
ConJur — Sua tese é de que só se consegue inibir a impunidade quando o corrupto assumido passa pelo devido processo legal. Decisões que tendam a dar uma resposta rápida ao clamor por condenações acabam sendo um tiro pela culatra?
Rui Cunha Martins — Sim. Há uma ideia de que o sistema jurídico, quando condenar um poderoso, está finalmente a dar resposta aos anseios de justiça social. Ora, o fato de se viver em um Estado de Direito tem um preço, que é o devido processo legal. É nesse conceito que está incrustada a ideia de Estado de Direito e, sobretudo, de uma das versões de Estado de Direito, que é o Estado Democrático de Direito. Esse devido processo legal não tem que ter uma vinculação ao estrato social da pessoa que está a ser julgada. Esse princípio tem sofrido uma distorção no Brasil. Tem havido um peso de punição, de prisões, de execuções, proveniente de camadas sociais. Essa mesma sociedade, depois, tem de enfrentar problemas no sistema prisional. Esse problema nasce de outros. São problemas econômicos não resolvidos, de desigualdade social, do sistema capitalista. O sistema econômico não resolveu o problema da desigualdade social, dos crimes de injustiça econômica. Não é surpresa, portanto, que no âmbito do Estado de Direito, que funciona a partir de um processo legal, se esteja a procurar que seja o sistema jurídico quem resolva os problemas que o sistema econômico não resolveu. E quem carrega essa bandeira tem a esperança de que os tribunais limpem o terreno. Nisso, o mensalão não traz nada de novo. Ele é a grande oportunidade que as populações cansadas de tanta desigualdade têm agora do revanchismo, da vingança. E o sistema jurídico aceita fazer esse papel.
ConJur — O que precisa se descaracterizar para fazer.
Rui Cunha Martins — Estamos a discutir isso em sociedades contemporâneas, no pleno vigor do Estado de Direito, que consolidou o conceito de “in dubio pro reo”, de que não há julgamento sem culpa formada, que privilegia sistemas garantistas. É por isso que vejo a corrupção como alvo da tentativa dos tribunais de procurar resolver o problema. A eleição da corrupção como alvo esconde o fundamental. Há uma falsa ideia de que, se limpássemos o terreno, tudo funcionaria bem. Tudo o quê? O sistema. Então, tudo, afinal, é contestar o sistema. Há outra ideia, subjacente a isso, de que a corrupção é patológica em relação ao sistema, o sistema capitalista. Não é só patológica, ela é também sociológica. A grande discussão é se o sistema capitalista a produz fisiologicamente, por instituir uma sociedade que vive do lucro, da ideia de valor, de mercadoria. Será possível que uma sociedade cada vez mais orientada para isso não produza fisiologicamente corrupção? O sistema que temos produziu desigualdades socioeconômicas sem as quais não é possível discutir o sistema de carceragem. Se os tribunais fizerem o papel da “limpeza” se arriscarão a ser os faxineiros do serviço, os idiotas úteis. Vai ficar tudo na mesma. Porque estamos queimando as etapas de discussão e debates que nunca foram feitos. São problemas antigos, mas não resolvemos.
ConJur — Como o Direito pode reagir?
Rui Cunha Martins — A sociedade tem estabilizadores de expectativas sociais e normativas. E o Direito, no ultimo século, tem feito esse papel. Aquilo que devo esperar é aquilo que o Direito permite. Como a religião fez esse papel, a Ciência fez esse papel, enfim, é o progresso. “Estado de Direito” quer dizer que o Direito deve estabilizar as minhas expectativas sociais e normativas. Aonde posso ir, o que posso esperar, o que é permitido. O que nós assistimos é o enfrentamento entre os julgamentos pelos tribunais e os julgamentos pela mídia, a manifestação da mídia na forma como ela traduz os protestos das ruas. É o que chamo de batalha das expectativas. É uma batalha que o Direito tem que perder. O Direito nunca vai ser tão rápido. Porque o processo é uma garantia? Porque implica demora. O processo muito rápido é o que faz a mídia. Coloca uma pessoa como suspeita, mas a prova não está presente. A evidência é tomada como prova.
ConJur — A sociedade não compreende a diferença?
Rui Cunha Martins — É uma diferença basilar, porque implica dois tipos de narrativa, dois tipos de conhecimento, dois tipos da abordagem da realidade. São conceitos gêmeos, mas não coincidentes. Estamos, nesta entrevista, em três pessoas. Isso é evidente. E se é evidente, não preciso provar. Essa é a força do discurso da evidência, do discurso rápido, intuitivo, instantâneo. O discurso da evidência dispensa a prova. Mas no Direito, no âmbito do devido processo legal, que deve se erguer no horizonte constitucional do Estado Democrático de Direito, é suposto que as decisões judiciais são construídas não sobre evidência, ou seja, não sobre aquilo que é imediato, mas sobre uma prova, depois de se ter feito uma série de contraditórios, de indagações. E, portanto, esse é o enfrentamento entre mídia e tribunal, a expressão dos dois discursos e dos dois tipos de conceito. A função social da mídia é essa, de informar. O Direito nunca vai ganhar essa batalha. Porque presume que, na dúvida, é preciso libertar. É claro que também há dimensões escandalosas no Direito, que é quando o processo demora tanto e de forma nada inocente. Mas também é escândalo quando tenta ser rápido demais. Tem de haver grande cautela com a celeridade. Ela é a tradução de pressupostos eficientistas para o Direito Penal. Esse é um dos motivos pelos quais se deve ter cuidado com a transação penal.
ConJur — A informação judicial não é útil à população?
Rui Cunha Martins — A pergunta que tem que ser feita às populações é: “Querem, afinal, o Estado de Direito?” Não se tem feito essa pergunta por dois motivos: um é porque as pessoas têm sido seduzidas com o excesso voyeurista, com os julgamentos indiretos. Tornou-se um costume dizer que o Brasil é o país da impunidade. Ora, todos os países o são, de uma maneira ou de outra. O que é específico no caso brasileiro é o peso que tem se dado ao julgamento indireto. É dar à criança o brinquedo e não explicar como funciona, porque não há uma descodificação. As pessoas não sabem que, em um julgamento, não se faz um “Fla-Flu”, não se pode tomar partido. Não lhes é dito que há procedimentos, e isso é um problema quase perverso.
ConJur — O problema é da informação ou dos meios?
Rui Cunha Martins — O Estado Democrático é o Estado que dá satisfações e, portanto, onde tem de haver transparência. Ele faz contraponto com o Estado inquisitivo, autoritário, em que não havia transparência. Já sabemos tudo o que isso causou. Agora, porém, temos que abrir a problemática da transparência. Porque em um mundo que tudo comunica, a transparência é quase pornográfica. E o sentido de pornografia é o de uma transparência sem contenção. Quando falo sobre o voyeurismo é no sentido de as pessoas só veem, sem terem a descodificação daquilo. É o problema da transmissão excessiva e direta dos julgamentos. A transparência já ameaça o próprio sistema democrático, porque atenta contra a privacidade das pessoas e é vítima da manipulação informativa do povo, da massa.
ConJur — Qual é a responsabilidade do povo?
Rui Cunha Martins — O povo é identificado como portador de um desígnio sacrossanto. Ele não se engana, é sabedor. Essa é uma retórica que permeia a narrativa dos consensos democráticos, de que a bondade está no povo. Isso é perigoso quando contrasta com a imagem dos seus representantes, que são “vândalos”, “maléficos”, “corruptos”. É uma linguagem da revolução francesa, perigosa porque alimenta uma suspeição quanto à política e acaba por omitir que o povo, como massa, foi conivente com a ditadura e com o totalitarismo. Por isso, não espanta que, hoje em dia, haja desinteligências, que os cidadãos não queiram garantias processuais e achem que isso seja um exagero, uma excrescência. O próprio Estado de Direito, embora nós esqueçamos disso, surgiu não apenas como oposto ao Estado absolutista, ao Estado de polícia, mas também ao terror revolucionário, à massa, ao grande número. O Estado de Direito tem uma dificuldade enorme de lidar com a massa e é produto de um compromisso de várias forças conservadoras. E nisso está a sua força também, porque é um Estado garantista, porque garante também contra o povo. Portanto, não admira que sempre que a rua fala, o Estado de Direito treme. Nem espanta que a própria rua não perceba que o discurso do Estado de Direito existe para proteger, que as garantias são para as populações. Não se tem essa ideia, não se sente isso como seu.
ConJur — O Estado funciona mal por causa da corrupção ou da incompetência? Não se está mirando o alvo errado?
Rui Cunha Martins — Eu também coloco essa pergunta. Quer nível macro, quer níveis micro, quer nível de política global estatal, quer nível de pequenas instituições, tenho defendido que o problema de se entrar no estudo da corrupção e pretendermos que aquilo que não funciona tem a ver com o que ela tira omite algo importante. E essa omissão é política, é nossa capacidade de medir quando determinada pessoa, à frente de determinada instituição, é ou não competente. É a pergunta final: Quem é que exerce? Como é que exerce? E que decisões tomou esse representante, esse governante, esse togado? Por que que todo esse movimento populista em certo sentido é perigoso para a política? Porque omite essa pergunta. Ora, se eu vou atrás dos corruptos, vou excluir que os virtuosos podem não ser competentes. A ideologia dos honestos vai ditar as decisões. E essas decisões podem ser, elas próprias, do ponto de vista político, mais honestas ou não, mais virtuosas ou não.
ConJur — E isso não pode ser decidido nos tribunais.
Rui Cunha Martins — Evidentemente.
ConJur — Como vê a TV Justiça no Brasil, que foi considerada um exemplo até mesmo pelo presidente da Suprema Corte do Reino Unido?
Rui Cunha Martins — É um exemplo de transparência, é credora dos maiores elogios, principalmente por seu pioneirismo. Entendo a bondade da ideia. Meu problema é que o próprio conceito que traduz essa iniciativa, da existência desse canal televisivo, que é o conceito de transparência, deve ser repensado. Quando digo isso não estou esfregando as mãos para dizer que, afinal, a ditadura era boa. Nada disso. Essa conquista é fundamental, mas tem que ser repensada para não ser o coveiro daquilo em nome do qual ela foi forjada. Se essa experiência é boa e pioneira, não se pode furtar à crítica. Esse mecanismo interfere na decisão judicial.
ConJur — Como?
Rui Cunha Martins — Hoje, temos que incorporar mais uma etapa no processo, a etapa em que as expressões sociais interferem sobre o que o juiz vai decidir. Ou seja, a decisão tem um componente que já não é formal. É o momento das expectativas sociais midiaticamente mediadas.
ConJur — Os julgamentos fechados ao público estão isentos?
Rui Cunha Martins — Eu prefiro a sociedade em que esse assunto pode ser debatido e é debatido de forma rigorosa. O que quer que se decida sobre esse assunto, que seja o resultado de um debate feito na esfera pública. Nós temos que reabrir as discussões sobre os limites. As sociedades democráticas, ao contrário do que a gente estuda muitas vezes, não são sociedades em que acontece o contrário das ditaduras repletas de limites e regras. Pelo contrário, as sociedades democráticas são as que aceitaram debater os limites que querem. E limites que aceitem a sua revisão, que aceitem responder sobre sua legitimidade.
ConJur — Um de seus livros diz que só o processo é potencial ruptura com a ordem estabelecida. Por quê?
Rui Cunha Martins — Estamos a viver em um mundo que apresenta problemas novos, para os quais só temos mecanismos antigos. Quando se vive em ditaduras, a ruptura é tentar o ato revolucionário. Mas quando a democracia se instala como regime de consenso, como procurar rupturas, sendo que está patente que elas são necessárias? Como reinventar a diferença, a mudança? Como reinventar a mudança? Isso também vem junto com alguma insatisfação com a transição. Porque as sociedades que passaram da ditadura para a democracia usaram o mecanismo da transição, que é um mecanismo de mudança. Mas é um mecanismo incompleto, porque as transições não fazem tudo. Transita-se, mas há muito que permanece. Porque os juízes que exerciam os cargos durante a ditadura não foram mudados, não são mudados em um momento de transição política. A transição é incompleta. Ela diz que alguma coisa, a partir de agora, se pode fazer. Mas está tudo por fazer. O mais óbvio, diante da insatisfação com a transição, é buscar o ato, o evento. Nós precisamos, sem dúvida, de uma ruptura com o existente. O existente é uma sobreposição das formas, das realidades, do sistema político, do sistema jurídico. E aí entra o Judiciário e o julgamento cada vez mais apressado pela busca da celeridade. Se isso constitui nossa realidade, aquilo que temporariamente rompe com essa realidade é o mecanismo em sentido contrário, que garante hiatos, que garante processos. Por isso digo que só o processo é potencial ruptura. O processo é radical.
ConJur — Mas ele atende à necessidade de punição ao mesmo tempo em que freia a sede de sangue?
Rui Cunha Martins — Ele tem que, sobretudo, achar uma decisão. Porque a sociedade só quer a decisão. Não é discussão pela discussão. É chegar a termos seguros. A segurança jurídica não é punir. Segurança jurídica é saber que houve um devido processo legal. O Estado de Direito não é salvo cada vez que um corrupto é condenado. E não será salvo se prender pessoas que não deveriam ser presas. Dizer: “Eu também vou julgar poderoso” não vai oferecer segurança às populações. Porque o processo continua a ser injusto socialmente, continua a ter uma matriz de decisão que tem por base o estrato social da pessoa. Sempre que se cria mecanismos para combate ao crime organizado, à corrupção, ao crime de colarinho branco, ao desvio de fundos, ao crime com dinheiro público, como violar o sigilo bancário, esses dispositivos de controle, daqui a cinco ou dez anos, já não funciona, porque o “peixe graúdo” já aprendeu a lidar com eles. Só que o mecanismo ficou criado. E quem vai cair dentro do mecanismo? Criamos as coisas com um intuito, mas elas depois ficam disponíveis para uso geral.
ConJur — Existe a verdade no processo penal?
Rui Cunha Martins — É impensável deixar que a verdade seja, como foi no âmbito do processo inquisitorial, a rainha do processo, porque isso alimentou situações em que, em nome da verdade, tudo era permitido. Alguém era torturado, por exemplo, para se chegar à verdade. É preciso pensar no trajeto da maior parte dos juízes para chegar às suas decisões. O processo não pode produzir verdade. Mas é impensável, também, que um dos elementos constantes do processo não seja a linha da verdade, de alguma maneira. Ou seja, uma coisa é dizer: “Não é suposto que o processo tem a garantia da verdade.” Estou de acordo com isso. E que se diga que não vale tudo para se conseguir a verdade. Agora, há métodos em que estou a buscar, de fato, uma reconstituição do que se passou. Claro que essa reconstituição não é verdade, mas nenhuma reconstituição é verdade. Não é possível reconstituir o que se passou. O processo produz determinado tipo de representação, mas não produz verdade. Porque a verdade é sempre autoral. Não há verdade sem autor. Quem proferiu? Em que condições lógicas, sociais, temporais e de poder proferiu?
ConJur — Levando em conta as convicções de quem profere a decisão judicial, é possível dizer que ela já está tomada antes mesmo de as partes serem ouvidas?
Rui Cunha Martins — Fatalmente todos nós partimos para uma decisão com níveis de pré-compreensão. Às vezes no nível do impensável, intuitivo, com intuições, com preconceitos. Preconceito relativamente a determinado assunto, à possibilidade de aquela pessoa ser ou não quem praticou determinado ato. É suposto que o processo de convicção é um processo de depuração. Eu vou depurar minha crença inicial. Aqui está em jogo a diferença entre crença e convicção. A crença corresponde à evidência, na oposição que mencionamos antes sobre evidência e prova. Crença é em algo que eu não tenho que justificar. A decisão judicial não pode ser atingida a partir de níveis de crença. Ela precisa passar por várias etapas mediante as quais essa crença originária será desmentida, controlada, despistada. A convicção, por sua vez, é todo processo de constrangimento à crença. Esses processos nunca são perfeitos. É por isso que, apesar de tudo, se garante o in dubio pro reo, dimensão garantista que tem por pano de fundo a possibilidade do erro judiciário.
Para Martins, ao relativizar a importância das provas e justificar entendimentos com a repercussão que o resultado do julgamento teria em outros casos ou na opinião pública, o Supremo admitiu a participação de um elemento informal na técnica de decidir: a pressão social. Pressão essa que, segundo o professor, se volta contra a corrupção como se ela fosse a causa dos problemas sociais e econômicos do país. Em sua opinião, porém, esse tipo de pensamento tira o foco de um mal ainda mais destrutivo: a incompetência de quem tem a obrigação de guiar bem a gestão pública. Em entrevista exclusiva concedida à ConJur, ele afirma: “Se os tribunais fizerem o papel da ‘limpeza’, se arriscarão a ser os faxineiros do serviço, os idiotas úteis”.
E ele é ainda mais assertivo. Diagnosticando o movimento, que com a postura do Supremo ganha força na Justiça, Martins faz um alerta. Diante do anseio em acabar com a corrupção colocando ricos e poderosos atrás das grades, há o risco de se questionar a conveniência de se viver em um Estado Democrático de Direito, que, por regra, não pode abrir mão do devido processo legal — princípio que, por natureza, pede o contraditório e é inimigo da pressa em julgamentos penais. “Devido processo legal não tem que ter uma vinculação ao estrato social da pessoa que está a ser julgada. Esse princípio tem sofrido uma distorção no Brasil. Tem havido um peso de punição, de prisões, de execuções, proveniente de camadas sociais”, afirma. “O Estado de Direito não é salvo cada vez que um corrupto é condenado. E não será salvo se prender pessoas que não deveriam ser presas. Dizer: ‘Eu também vou julgar poderoso’ não vai oferecer segurança às populações.”
O professor visitou a redação da ConJur em uma de suas viagens ao Brasil, que faz com frequência para dar palestras em universidades.
Leia a entrevista:
ConJur — O Ponto Cego do Direito: The Brazilian Lessons e A Hora dos Cadáveres Adiados foram duas obras recentes com análises sobre eventos na sociedade brasileira, como as manifestações de junho. Qual foi o objetivo?
Rui Cunha Martins — Há um objetivo especifico e um objetivo comum. O objetivo comum é o de tentar construir uma problemática, pensar assuntos que o senso comum nos coloca, problemas da sociedade atual, das sociedades contemporâneas e, sobretudo, da sociedade brasileira. De forma a construir o que eu chamo de uma boa problemática, tentar pensar em vez de tomar partido ou, de forma impulsiva, transportar nossas pré-compreensões para assuntos que são mais sérios do que elas. Minha intenção é sugerir vias reflexivas para problemas que o Direito coloca.
ConJur — Suas obras fazem uma distinção entre a forma legal e a forma política de ver.
Rui Cunha Martins — Meu trabalho se situa no cruzamento entre Ciência Política, Direito e História. É um trabalho situado nos interstícios, nas dobras, nas pontes. Um exemplo concreto na sociedade brasileira se refere às expectativas sociais criadas em face à decisão judicial. O megaprocesso do mensalão é a expressão máxima de determinados problemas que há muito tempo ocorrem na sociedade brasileira e nas relações entre o sistema jurídico e o sistema social. Estamos a falar de uma zona de fronteira, de passagem. É uma tripla fronteira, porque, além do sistema social e do jurídico, há interferência da mídia e, portanto, do sistema comunicacional também. O sistema comunicacional é hoje expressão do sistema econômico. A mídia é a tradução do poder econômico. Os grupos de empresas são grandes. É o motivo do título do meu segundo livro, A Hora dos Cadáveres Adiados. É uma procissão de cadáveres, na qual está o sistema jurídico, que é a parte sacramentada, a parte do rei do momo no Carnaval, do bobo, que está desacreditado. É também uma festa que não pode passar sem o sistema político, em quem todos batem também. Mas a prova de que todos fazem política é em relação aos juízes do Supremo. Alguns deles são apontados até mesmo como putativos candidatos presidenciais, ou seja, candidatos ao topo do sistema político.
ConJur — O Supremo Tribunal Federal é uma corte constitucional em que a política faz parte das decisões, até por conta da forma como deve ser composto. É razoável que ele decida estritamente com argumentos jurídicos?
Rui Cunha Martins — Não tenha certeza se se quer isso. Sim, há um senso comum jurídico, porque não há só o senso geral da rua, mas também o senso comum jurídico. Mas vimos que a pressão feita sobre os ministros a partir das ruas, do sistema social, é justamente o contrário. A exigência que é feita — ou pelo menos que a mídia retrata ser feita — pelas populações é a de que haja julgamento político. Ou seja, que se dê o sinal fortemente político no sentido, quase pedagógico, de excomungar o poderoso. O problema é como desempenhar uma função que também é política, mas não pode deixar de ser técnica. E aqui já estamos quase a falar na teoria da democracia, no lugar do Direito nas sociedades democráticas, do Estado de Direito. Como uma decisão pode ter em conta as expectativas sociais?
ConJur — E qual é a resposta?
Rui Cunha Martins — Essa foi uma questão presente, por exemplo, no mensalão, em relação aos Embargos Infringentes. Até que ponto há obrigação do Direito em dar resposta às expectativas sociais? Isso é preocupante. É preocupante pensar que as expectativas sociais a respeito do Direito e do sistema jurídico sejam interpretadas no sentido de que o ruído da rua deve ser levado em conta pela decisão judicial. Penso que, no âmbito do Estado de Direito, não pode ser levado em conta. Não é dessa forma que se assegura a certeza do Direito.
ConJur — Sua tese é de que só se consegue inibir a impunidade quando o corrupto assumido passa pelo devido processo legal. Decisões que tendam a dar uma resposta rápida ao clamor por condenações acabam sendo um tiro pela culatra?
Rui Cunha Martins — Sim. Há uma ideia de que o sistema jurídico, quando condenar um poderoso, está finalmente a dar resposta aos anseios de justiça social. Ora, o fato de se viver em um Estado de Direito tem um preço, que é o devido processo legal. É nesse conceito que está incrustada a ideia de Estado de Direito e, sobretudo, de uma das versões de Estado de Direito, que é o Estado Democrático de Direito. Esse devido processo legal não tem que ter uma vinculação ao estrato social da pessoa que está a ser julgada. Esse princípio tem sofrido uma distorção no Brasil. Tem havido um peso de punição, de prisões, de execuções, proveniente de camadas sociais. Essa mesma sociedade, depois, tem de enfrentar problemas no sistema prisional. Esse problema nasce de outros. São problemas econômicos não resolvidos, de desigualdade social, do sistema capitalista. O sistema econômico não resolveu o problema da desigualdade social, dos crimes de injustiça econômica. Não é surpresa, portanto, que no âmbito do Estado de Direito, que funciona a partir de um processo legal, se esteja a procurar que seja o sistema jurídico quem resolva os problemas que o sistema econômico não resolveu. E quem carrega essa bandeira tem a esperança de que os tribunais limpem o terreno. Nisso, o mensalão não traz nada de novo. Ele é a grande oportunidade que as populações cansadas de tanta desigualdade têm agora do revanchismo, da vingança. E o sistema jurídico aceita fazer esse papel.
ConJur — O que precisa se descaracterizar para fazer.
Rui Cunha Martins — Estamos a discutir isso em sociedades contemporâneas, no pleno vigor do Estado de Direito, que consolidou o conceito de “in dubio pro reo”, de que não há julgamento sem culpa formada, que privilegia sistemas garantistas. É por isso que vejo a corrupção como alvo da tentativa dos tribunais de procurar resolver o problema. A eleição da corrupção como alvo esconde o fundamental. Há uma falsa ideia de que, se limpássemos o terreno, tudo funcionaria bem. Tudo o quê? O sistema. Então, tudo, afinal, é contestar o sistema. Há outra ideia, subjacente a isso, de que a corrupção é patológica em relação ao sistema, o sistema capitalista. Não é só patológica, ela é também sociológica. A grande discussão é se o sistema capitalista a produz fisiologicamente, por instituir uma sociedade que vive do lucro, da ideia de valor, de mercadoria. Será possível que uma sociedade cada vez mais orientada para isso não produza fisiologicamente corrupção? O sistema que temos produziu desigualdades socioeconômicas sem as quais não é possível discutir o sistema de carceragem. Se os tribunais fizerem o papel da “limpeza” se arriscarão a ser os faxineiros do serviço, os idiotas úteis. Vai ficar tudo na mesma. Porque estamos queimando as etapas de discussão e debates que nunca foram feitos. São problemas antigos, mas não resolvemos.
ConJur — Como o Direito pode reagir?
Rui Cunha Martins — A sociedade tem estabilizadores de expectativas sociais e normativas. E o Direito, no ultimo século, tem feito esse papel. Aquilo que devo esperar é aquilo que o Direito permite. Como a religião fez esse papel, a Ciência fez esse papel, enfim, é o progresso. “Estado de Direito” quer dizer que o Direito deve estabilizar as minhas expectativas sociais e normativas. Aonde posso ir, o que posso esperar, o que é permitido. O que nós assistimos é o enfrentamento entre os julgamentos pelos tribunais e os julgamentos pela mídia, a manifestação da mídia na forma como ela traduz os protestos das ruas. É o que chamo de batalha das expectativas. É uma batalha que o Direito tem que perder. O Direito nunca vai ser tão rápido. Porque o processo é uma garantia? Porque implica demora. O processo muito rápido é o que faz a mídia. Coloca uma pessoa como suspeita, mas a prova não está presente. A evidência é tomada como prova.
ConJur — A sociedade não compreende a diferença?
Rui Cunha Martins — É uma diferença basilar, porque implica dois tipos de narrativa, dois tipos de conhecimento, dois tipos da abordagem da realidade. São conceitos gêmeos, mas não coincidentes. Estamos, nesta entrevista, em três pessoas. Isso é evidente. E se é evidente, não preciso provar. Essa é a força do discurso da evidência, do discurso rápido, intuitivo, instantâneo. O discurso da evidência dispensa a prova. Mas no Direito, no âmbito do devido processo legal, que deve se erguer no horizonte constitucional do Estado Democrático de Direito, é suposto que as decisões judiciais são construídas não sobre evidência, ou seja, não sobre aquilo que é imediato, mas sobre uma prova, depois de se ter feito uma série de contraditórios, de indagações. E, portanto, esse é o enfrentamento entre mídia e tribunal, a expressão dos dois discursos e dos dois tipos de conceito. A função social da mídia é essa, de informar. O Direito nunca vai ganhar essa batalha. Porque presume que, na dúvida, é preciso libertar. É claro que também há dimensões escandalosas no Direito, que é quando o processo demora tanto e de forma nada inocente. Mas também é escândalo quando tenta ser rápido demais. Tem de haver grande cautela com a celeridade. Ela é a tradução de pressupostos eficientistas para o Direito Penal. Esse é um dos motivos pelos quais se deve ter cuidado com a transação penal.
ConJur — A informação judicial não é útil à população?
Rui Cunha Martins — A pergunta que tem que ser feita às populações é: “Querem, afinal, o Estado de Direito?” Não se tem feito essa pergunta por dois motivos: um é porque as pessoas têm sido seduzidas com o excesso voyeurista, com os julgamentos indiretos. Tornou-se um costume dizer que o Brasil é o país da impunidade. Ora, todos os países o são, de uma maneira ou de outra. O que é específico no caso brasileiro é o peso que tem se dado ao julgamento indireto. É dar à criança o brinquedo e não explicar como funciona, porque não há uma descodificação. As pessoas não sabem que, em um julgamento, não se faz um “Fla-Flu”, não se pode tomar partido. Não lhes é dito que há procedimentos, e isso é um problema quase perverso.
ConJur — O problema é da informação ou dos meios?
Rui Cunha Martins — O Estado Democrático é o Estado que dá satisfações e, portanto, onde tem de haver transparência. Ele faz contraponto com o Estado inquisitivo, autoritário, em que não havia transparência. Já sabemos tudo o que isso causou. Agora, porém, temos que abrir a problemática da transparência. Porque em um mundo que tudo comunica, a transparência é quase pornográfica. E o sentido de pornografia é o de uma transparência sem contenção. Quando falo sobre o voyeurismo é no sentido de as pessoas só veem, sem terem a descodificação daquilo. É o problema da transmissão excessiva e direta dos julgamentos. A transparência já ameaça o próprio sistema democrático, porque atenta contra a privacidade das pessoas e é vítima da manipulação informativa do povo, da massa.
ConJur — Qual é a responsabilidade do povo?
Rui Cunha Martins — O povo é identificado como portador de um desígnio sacrossanto. Ele não se engana, é sabedor. Essa é uma retórica que permeia a narrativa dos consensos democráticos, de que a bondade está no povo. Isso é perigoso quando contrasta com a imagem dos seus representantes, que são “vândalos”, “maléficos”, “corruptos”. É uma linguagem da revolução francesa, perigosa porque alimenta uma suspeição quanto à política e acaba por omitir que o povo, como massa, foi conivente com a ditadura e com o totalitarismo. Por isso, não espanta que, hoje em dia, haja desinteligências, que os cidadãos não queiram garantias processuais e achem que isso seja um exagero, uma excrescência. O próprio Estado de Direito, embora nós esqueçamos disso, surgiu não apenas como oposto ao Estado absolutista, ao Estado de polícia, mas também ao terror revolucionário, à massa, ao grande número. O Estado de Direito tem uma dificuldade enorme de lidar com a massa e é produto de um compromisso de várias forças conservadoras. E nisso está a sua força também, porque é um Estado garantista, porque garante também contra o povo. Portanto, não admira que sempre que a rua fala, o Estado de Direito treme. Nem espanta que a própria rua não perceba que o discurso do Estado de Direito existe para proteger, que as garantias são para as populações. Não se tem essa ideia, não se sente isso como seu.
ConJur — O Estado funciona mal por causa da corrupção ou da incompetência? Não se está mirando o alvo errado?
Rui Cunha Martins — Eu também coloco essa pergunta. Quer nível macro, quer níveis micro, quer nível de política global estatal, quer nível de pequenas instituições, tenho defendido que o problema de se entrar no estudo da corrupção e pretendermos que aquilo que não funciona tem a ver com o que ela tira omite algo importante. E essa omissão é política, é nossa capacidade de medir quando determinada pessoa, à frente de determinada instituição, é ou não competente. É a pergunta final: Quem é que exerce? Como é que exerce? E que decisões tomou esse representante, esse governante, esse togado? Por que que todo esse movimento populista em certo sentido é perigoso para a política? Porque omite essa pergunta. Ora, se eu vou atrás dos corruptos, vou excluir que os virtuosos podem não ser competentes. A ideologia dos honestos vai ditar as decisões. E essas decisões podem ser, elas próprias, do ponto de vista político, mais honestas ou não, mais virtuosas ou não.
ConJur — E isso não pode ser decidido nos tribunais.
Rui Cunha Martins — Evidentemente.
ConJur — Como vê a TV Justiça no Brasil, que foi considerada um exemplo até mesmo pelo presidente da Suprema Corte do Reino Unido?
Rui Cunha Martins — É um exemplo de transparência, é credora dos maiores elogios, principalmente por seu pioneirismo. Entendo a bondade da ideia. Meu problema é que o próprio conceito que traduz essa iniciativa, da existência desse canal televisivo, que é o conceito de transparência, deve ser repensado. Quando digo isso não estou esfregando as mãos para dizer que, afinal, a ditadura era boa. Nada disso. Essa conquista é fundamental, mas tem que ser repensada para não ser o coveiro daquilo em nome do qual ela foi forjada. Se essa experiência é boa e pioneira, não se pode furtar à crítica. Esse mecanismo interfere na decisão judicial.
ConJur — Como?
Rui Cunha Martins — Hoje, temos que incorporar mais uma etapa no processo, a etapa em que as expressões sociais interferem sobre o que o juiz vai decidir. Ou seja, a decisão tem um componente que já não é formal. É o momento das expectativas sociais midiaticamente mediadas.
ConJur — Os julgamentos fechados ao público estão isentos?
Rui Cunha Martins — Eu prefiro a sociedade em que esse assunto pode ser debatido e é debatido de forma rigorosa. O que quer que se decida sobre esse assunto, que seja o resultado de um debate feito na esfera pública. Nós temos que reabrir as discussões sobre os limites. As sociedades democráticas, ao contrário do que a gente estuda muitas vezes, não são sociedades em que acontece o contrário das ditaduras repletas de limites e regras. Pelo contrário, as sociedades democráticas são as que aceitaram debater os limites que querem. E limites que aceitem a sua revisão, que aceitem responder sobre sua legitimidade.
ConJur — Um de seus livros diz que só o processo é potencial ruptura com a ordem estabelecida. Por quê?
Rui Cunha Martins — Estamos a viver em um mundo que apresenta problemas novos, para os quais só temos mecanismos antigos. Quando se vive em ditaduras, a ruptura é tentar o ato revolucionário. Mas quando a democracia se instala como regime de consenso, como procurar rupturas, sendo que está patente que elas são necessárias? Como reinventar a diferença, a mudança? Como reinventar a mudança? Isso também vem junto com alguma insatisfação com a transição. Porque as sociedades que passaram da ditadura para a democracia usaram o mecanismo da transição, que é um mecanismo de mudança. Mas é um mecanismo incompleto, porque as transições não fazem tudo. Transita-se, mas há muito que permanece. Porque os juízes que exerciam os cargos durante a ditadura não foram mudados, não são mudados em um momento de transição política. A transição é incompleta. Ela diz que alguma coisa, a partir de agora, se pode fazer. Mas está tudo por fazer. O mais óbvio, diante da insatisfação com a transição, é buscar o ato, o evento. Nós precisamos, sem dúvida, de uma ruptura com o existente. O existente é uma sobreposição das formas, das realidades, do sistema político, do sistema jurídico. E aí entra o Judiciário e o julgamento cada vez mais apressado pela busca da celeridade. Se isso constitui nossa realidade, aquilo que temporariamente rompe com essa realidade é o mecanismo em sentido contrário, que garante hiatos, que garante processos. Por isso digo que só o processo é potencial ruptura. O processo é radical.
ConJur — Mas ele atende à necessidade de punição ao mesmo tempo em que freia a sede de sangue?
Rui Cunha Martins — Ele tem que, sobretudo, achar uma decisão. Porque a sociedade só quer a decisão. Não é discussão pela discussão. É chegar a termos seguros. A segurança jurídica não é punir. Segurança jurídica é saber que houve um devido processo legal. O Estado de Direito não é salvo cada vez que um corrupto é condenado. E não será salvo se prender pessoas que não deveriam ser presas. Dizer: “Eu também vou julgar poderoso” não vai oferecer segurança às populações. Porque o processo continua a ser injusto socialmente, continua a ter uma matriz de decisão que tem por base o estrato social da pessoa. Sempre que se cria mecanismos para combate ao crime organizado, à corrupção, ao crime de colarinho branco, ao desvio de fundos, ao crime com dinheiro público, como violar o sigilo bancário, esses dispositivos de controle, daqui a cinco ou dez anos, já não funciona, porque o “peixe graúdo” já aprendeu a lidar com eles. Só que o mecanismo ficou criado. E quem vai cair dentro do mecanismo? Criamos as coisas com um intuito, mas elas depois ficam disponíveis para uso geral.
ConJur — Existe a verdade no processo penal?
Rui Cunha Martins — É impensável deixar que a verdade seja, como foi no âmbito do processo inquisitorial, a rainha do processo, porque isso alimentou situações em que, em nome da verdade, tudo era permitido. Alguém era torturado, por exemplo, para se chegar à verdade. É preciso pensar no trajeto da maior parte dos juízes para chegar às suas decisões. O processo não pode produzir verdade. Mas é impensável, também, que um dos elementos constantes do processo não seja a linha da verdade, de alguma maneira. Ou seja, uma coisa é dizer: “Não é suposto que o processo tem a garantia da verdade.” Estou de acordo com isso. E que se diga que não vale tudo para se conseguir a verdade. Agora, há métodos em que estou a buscar, de fato, uma reconstituição do que se passou. Claro que essa reconstituição não é verdade, mas nenhuma reconstituição é verdade. Não é possível reconstituir o que se passou. O processo produz determinado tipo de representação, mas não produz verdade. Porque a verdade é sempre autoral. Não há verdade sem autor. Quem proferiu? Em que condições lógicas, sociais, temporais e de poder proferiu?
ConJur — Levando em conta as convicções de quem profere a decisão judicial, é possível dizer que ela já está tomada antes mesmo de as partes serem ouvidas?
Rui Cunha Martins — Fatalmente todos nós partimos para uma decisão com níveis de pré-compreensão. Às vezes no nível do impensável, intuitivo, com intuições, com preconceitos. Preconceito relativamente a determinado assunto, à possibilidade de aquela pessoa ser ou não quem praticou determinado ato. É suposto que o processo de convicção é um processo de depuração. Eu vou depurar minha crença inicial. Aqui está em jogo a diferença entre crença e convicção. A crença corresponde à evidência, na oposição que mencionamos antes sobre evidência e prova. Crença é em algo que eu não tenho que justificar. A decisão judicial não pode ser atingida a partir de níveis de crença. Ela precisa passar por várias etapas mediante as quais essa crença originária será desmentida, controlada, despistada. A convicção, por sua vez, é todo processo de constrangimento à crença. Esses processos nunca são perfeitos. É por isso que, apesar de tudo, se garante o in dubio pro reo, dimensão garantista que tem por pano de fundo a possibilidade do erro judiciário.
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