sexta-feira, 21 de março de 2014

MUITO BOM - As palavras e as coisas na terra dos fugitivos

O Cabra é bom...
Repeti na coluna Colocam até fantasia de mulher para matar a filosofia o bordão que inventei há tempos: “Se o direito fosse fácil, seria periguete”. Recebi algumas reclamações de parte do público jurídico-feminino, no sentido de eu ter comparado o "direito facilitado ou simplificado ou coisa-que-valha" a uma "mulher fácil", o que teria sido altamente ofensivo para as mulheres, uma vez que eu teria imposto (sic) um julgamento sobre a sexualidade que não cabia na reflexão, o que faria com que artifício argumentativo da crítica perdesse sua validade integralmente.
 
Um dos e-mails foi taxativo: “Hermeneuticamente, usar desse tipo de recurso não é muito melhor que usar o shortinho da Anitta pra ensinar Filosofia do Direito para OAB”. Em outro e-mail, disse-se que (as mulheres) espera(va)m que “a reflexão caiba em seus próximos textos e que as ‘periguetes’ sejam abolidas de qualquer comparação com a falência do Ensino Jurídico”.
 
Fiquei encafifado com isso. Por que eu teria sido ofensivo com as mulheres por usar o termo “periguete”? Peço desculpas, portanto, de forma antecipada, se magoei alguém. Eu disse: se o direito fosse fácil, seria periguete. Mas, pergunto: não existem “mulheres fáceis”, assim como “homens fáceis”? “Políticos fáceis”? A propósito, vejam o que diz a Revista Veja (09 de março de 2014), sob o título “O Periguetismo”: “Em sua 14ª Edição, o BBB consegue o que parecia impossível e explora ainda mais os atributos físicos de seus saradíssimos participantes. Mas não é só na aparência que brothers e sisters coincidem. Há traços de comportamento comuns. Com variações que são apenas de grau, as mulheres encarnam um personagem conhecido: a periguete. O curioso é que até nos homens é possível identificar traços de periguetismo”. Então? Afora as palavras “curioso” e “até”, o resto está perfeito na matéria. Não é “curioso”. É “normal”.
 
Mas, vamos esclarecer: não defendo qualquer direito fundamental a fazer blagues e piadas sobre “deficiências” ou “diferenças” ou “características” (ou até expertises, por que não) de pessoas.
 
Palavras e coisas: a angústia de tantos séculos

Isso me leva a refletir sobre as palavras e as coisas. Lendo as queixas fico pensando que há uma certa falácia realista (no sentido filosófico da palavra) no ar. É como se as palavras tivessem uma essência e carregassem o seu próprio sentido, algo “imanente”, naturalista (isomórfico). Isso é ainda muito comum no direito, quando se percebe as apostas em uma espécie de semântica discursiva. O projeto do novo CPC denota elevado grau de saudade do tempo do formalismo linguístico (sintático-semântico) ou da velha jurisprudência dos conceitos. Como se realidade complexa do processo pudesse ser “enfiada” em conceitos jurídicos (por exemplo, precedentes) e depois “desfiada” pelo aplicador (em vez de ser desafiada!).
 
No fundo, muitos ainda acreditam ser possível aprisionar as coisas dentro dos conceitos. Logo, se mudarmos os conceitos...mudamos as coisas. Bingo! Reificação e fetichização. É como se bastasse que deixássemos de utilizar o termo “periguete” ou qualquer semelhante para acabarmos com o periguetismo, isto é, aquilo que o termo denota no imaginário social. Enfim, é o mesmo que dizer que a palavra “periguete” carrega uma inerente carga de “perigueticidade”, que sozinha (a palavra ou conceito, enfim...) afrontaria a condição feminina. Por exemplo, um procurador da República ingressou com ação para retirar de circulação o Dicionário Houaiss, por causa do verbete “cigano”. O dicionário teria tecido “comentários” politicamente incorretos. Acho que ele acredita que a palavra “cigano” tem uma essência de “ciganidade” (como a “ranidade” da rã em Aristóteles). Expungindo o verbete, resolve-se o problema. Já li isso em algum lugar... Hum... Lembrei: 1984, de George Orwell. É a Novilíngia. O Ministério da Guerra era chamado de Ministério do Amor... O da Fome se chamava Ministério da Fartura...! Ora, vamos chamar “periguete” de qualquer coisa que quisermos... O que acham?! Assim os juristas atribuem sentidos às leis... Dá-se o nome que se quiser. Depois ocorre a “ontologização”. E, pronto: a realidade estará “transformada”.
 
Do fetiche se passa à reificação. Ideias (ou palavras) são transformadas em coisas. Também podemos denominar esse fenômeno de objetificação. Parte da comunidade jurídica é, por assim dizer, “ontológica” (mormente no sentido vulgar). Acreditam que há essências. Com isso, coisa julgada parece ser uma “senhora forte”; litisconsorte ativo parece ser um sujeito magro... Primeiro “criamos coisas”, para, depois, delas retirar a essência, com o que extraímos o sentido. Por vezes, chamamos a isso de natureza jurídica. Ou “conceito ontológico” mesmo. Por isso se pensa que, alterando a palavra, fiat lux: tudo está solucionado.[1]
 
No fundo, quando queremos saber a natureza jurídica, estamos “essencializando” os institutos jurídicos. E, com isso, poderemos levar a imputação até o seu nível mais exacerbado. No direito ainda gostamos da velha ontologia clássica. Não fosse por isso, não mais haveria a reza em favor do “princípio” (sic) da verdade real, pelo qual... bem, qualquer néscio pode fechar a frase.
 
Nesse contexto, fazendo uma caricatura, parece que a palavra água “pinga e molha”, a palavra bomba pode explodir e a palavra periguete “dá com facilidade” (peguei pesado, agora). Talvez por isso, tempos atrás, um grupo de militantes político-juvenis pediu uma retificação no Diário Oficial, porque lá estava escrito que um certo acampamento do MST seria chamado de Adão Preto (deputado já falecido). Queriam que se alterasse para Adão Negro (os nossos Einsteins esqueceram que o homenageado se chamava mesmo Preto e com t’s). E, pior: a alteração ocorreu (e, depois, “desocorreu”). Acho que dessa vez vamos à Estocolmo para ganhar o Nobel!
 
Entenderam o que quero dizer? Pensar que colocar nota de rodapé em Machado de Assis ou Monteiro Lobato (ou quem sabe, em Aristóteles, que, lendo-o amiúde, aceitava a escravidão e não tinha bons conceitos sobre as mulheres) resolve o problema social-histórico, a partir de uma incursão na sintaxe e na semântica, é esquecer a história da formação dos conceitos, a partir da complexidade que é a formação/construção (sempre social) dos sentidos (uma leitura de R. Kosellek seria bom, aqui). Como disse acima, quem quiser “brincar” com isso, leia G. Orwell e seu “1984”. A função do personagem era alterar as notícias do passado e, com isso, “mudava” o presente e, consequentemente, o futuro. E, para estabelecer as bases do novo establishment, nada melhor que um dicionário trazendo a novilíngua.
 
Por isso é que, atualmente, não mais consertamos coisas, e, sim, “revitalizamos”. Quando se abre uma reunião, diz-se “bom dia a todos... e a todas”. Maravilha. No conceito de “todos” parece que “as todas” não entram. Tem que criar um sentido próprio para...as “todas”. Já há até uma espécie de normatização sobre o uso da novilíngua. No RS o Parlamento aprovou lei obrigando os funcionários públicos a usar a linguagem politicamente correta. Isso mesmo. De acordo com a Lei 14.484 “entende-se por linguagem inclusiva de gênero o uso de vocábulos que designam o gênero feminino em substituição a vocábulos de flexão masculina para se referir ao homem e à mulher”. Disse o governador que, com a “linguagem inclusiva, abre-se uma fenda na cultura dominante, para que se tenha não apenas a dimensão formal do discurso, mas sim uma dimensão moral e política desta questão dentro da estrutura estatal”. O que ele quereria dizer com “dimensão moral”? De todo modo, veja-se o que diz o artigo 3.º da lei: “Os nomes dos cargos, empregos, funções e outras designações que recebam encargos públicos da Administração Pública Estadual, inclusive as patentes, postos e graduações dos círculos e escala hierárquica da Brigada Militar, deverão conter a flexão de gênero, de acordo com o sexo ou identificação de gênero do ocupante ou da ocupante”. O parágrafo único: “para fins do disposto no ‘caput’ deste artigo, quando da referência a cargo, emprego ou função pública ou posto, patente ou graduação da Brigada Militar, far-se-á a devida flexão do respectivo gênero de acordo com o sexo ou identificação de gênero do ocupante ou da ocupante, utilizando recursos de flexão e concordância da língua portuguesa”. Pronto. Tenente vira Tenenta. E paro por aqui.
 
Faltou a lei falar na pena de chicoteamento do sujeito que abrir uma palestra sem dizer “bom dia a todos e a todas”. E a palavra chicote chicoteia... Ouvi dizer que já tem gente pronta para vender um curso para ensinar os funcionários do RS a cumprirem a lei. Quer dizer: ensinar os funcionários e as funcionárias (quase fui multado (e chicoteado)!). Ah: teremos agora os pobres e as pobres; os corruptos e as corruptas. Bingo (e binga!). Estudantes e estudantas de direito? Como fica? Não acham que isso tudo é um exagero?
 
Se a moda pega, logo terá um projeto para que a OAB seja renomeada para OAAB - Ordem dos Advogados e Advogadas do Brasil. No RS, agora não haverá mais Associação dos Procuradores do Estado? Será Associação dos Procuradores e das Procuradoras? E assim por diante. Um problema: surgiu um hard case com os cabos da Brigada Militar (as cabos...ou as cabas?).
Falta proibir, por decreto, que se cante “atirei o pau no gato”, porque isso incita a violência... Ah, bom. Eu até hoje esgano gatos porque, quando pequeno, cantava isso. Ficou marcado no meu inconsciente...Boa psicanálise de galpão, pois não? Mais: como eu não tinha bicicleta, toda vez que passo por um ciclista busco atropelá-lo... Odeio donos de oficinas porque o nazista proprietário me maltratava... Falta proibir também que se cante, no carnaval, “o teu cabelo não nega...” ou “olha a cabeleira do Zezé...”.
 
No aeroporto, idosos são chamados de “melhor idade”. Só se for melhor-idade-para-tomar-remédio. Pergunte para quem tem mais de 70 anos o que acha desse politicamente correto modo de encher o saco dos outros nos aeroportos e similares. Aliás, leiam o grande Rubem Alves, que tem mais de sessenta. Aqui, remeto o leitor ao livro Alice através do espelho, no seu diálogo com Humpty Dumpty, que dá às palavras o sentido que quer... E o que os leitores acham de chamar a falta de chuvas — a estiagem — de estresse hídrico? Dá para aguentar?
 
Em Romeu e Julieta, de Shakespeare, lê-se: a rosa perderia seu perfume se lhe trocassem o nome? Ao mesmo tempo, cabe a pergunta: na palavra Nilo está toda a água do Nilo? Se eu trocar o nome dos livros simplificadores para “direito com menos complexidade” isso trará mais sofisticação aos pobres raciocínios ali contidos? Hein?!
 
É o mesmo que ignorar que existem “periguetes” no direito, “marias-chuteira” no futebol, alpinistas sociais ou coisa que o valha. E nisso cabe o gênero espécie humana. “periguete”, no sentido que eu trouxe para o direito, é toda tentativa de explicar as coisas de forma mais palpável, encurtando (o short) e o caminho... Isso também serve para explicar o fenômeno representado por alunos (homens e mulheres, todos-e-todas) tentando subir na vida (no caso, em carreiras jurídicas etc.) utilizando outros argumentos que não os do seu intelecto e de suas leituras. Dizer que Kelsen era um exegeta é uma forma de praticar periguetismo...Claro: em vez de ler Kelsen, faz um atalho lendo orelhas e livros facilitados.
 
Eu não inventei o termo “periguete”. É como a linguagem. Ela me antecede. Eu caio em um mundo em que já existe uma construção social de sentidos que independe de mim. Ingresso no mundo e dou minha pitada. Periguete, por exemplo, tem um sentido já cunhado por uma certa “tradição” no imaginário social de terrae brasilis. Já “pegou”. Perguntando para a malta o que é periguete, todos saberão.
 
Numa palavra

Não tenho receio em afirmar que há já hoje um imaginário periguético na sociedade brasileira. Uma sociedade patrimonialista-estamental gera periguetismos de todos os tipos. Vejam como as novelas “ensinam” bem essa arte de neoalpinismo! Quantas DAS (funções gratificadas) do serviço público em terrae brasilis são fruto de periguetismo feminino e masculino? Periguetismos sexuais, políticos, estamentais... Há de todo tipo. É inexorável (por exemplo, é notório que há escritórios que usam belos espécimes femininos – para impressionar determinadas autoridades). E isso existe independentemente de minha análise favorável ou desfavorável. Mudemos isso de nome... e a “coisa” continuará “sendo” (como no romance O Nome da Rosa: Stat rosa..). Já tratei disso na coluna Roxin ‘não sabe nada’ e o TJ-SP confirma minha tese.
 
E, vejam: essa noção transcende ao estreito conceito de que periguete é mulher que se entrega facilmente. A transcendência atira o conceito nos braços de um alargamento de sentido, um espichamento epistêmico, fazendo com que já estejamos em face de um conceito proto-performativo (esta frase é complexa, portanto, antiperiguete!). Portanto, basta alguém invocar o termo...e bingo. Lá está o sentido que exsurge. Nota: reconheço até o poder de violência simbólica do termo, no sentido de que fala Bourdieau – o emissor não coage; quem age é o receptor, que está inserido em um imaginário em que os meios de comunicação e as redes sociais tornaram o termo “periguete” algo com conteúdo, digamos assim, tão específico.
 
Talvez devamos fazer uma “epistemologia” do periguetismo. Mas talvez devamos combater o periguetismo, em vez de tentar mudar-lhe o nome ou fingir que não existe. Ou inventar repelentes contra o imaginário periguético. O alpinismo social, em uma sociedade extrativista, tem um terreno fértil. Do mesmo modo, o periguetismo na literatura jurídica deve ser enfrentado de frente, sem eufemismos. Pensar que é possível ensinar a complexidade do direito a partir de frases de efeito ou de drops de sentido, economizando palavras, é, sim, forte evidência de periguetismo. Palavras não são comodities.
 
Pensar que basta decorar uma lei ou parte do Código é suficiente para passar no exame da OAB é incorrer em um raciocínio-pequeno-periguético. Mas, atenção: fazer perguntas no exame da OAB e/ou em concursos públicos que demandam exatamente esse tipo de “treinamento” é igualmente resvalar em direção a esse imaginário periguético.
 
Talvez Machado de Assis tenha sido o primeiro crítico do “imaginário periguete”, ao escrever Memórias Póstumas de Brás Cubas. O personagem, efetivamente, confessa o seu periguetamento em suas memórias: a) ganhara a vida sem derramar um gota de suor do próprio rosto; b) tinha gastado uma fortuna com Marcela, a sua periguete de então (“Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”); c) estudara direito e nada aprendera (ipsis literis: com o diploma nas mãos e total inaptidão para o trabalho); d) Enamora-se de Virgília, parente de um ministro da corte, aconselhado pelo pai, que via no casamento com ela um futuro político, mas ela se casa com Lobo Neves, que lhe rouba Virgília e a candidatura a deputado que o pai preparava (pouco periguetismo dos dois lados, pois não?); e) fora um péssimo político; d) só não foi ministro, mas poderia ter sido, porque qualquer um pode ser ministro ou conselheiro; e) no balanço final, diz: Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. Talvez nisso residisse a sua única vantagem.
 
Machado também adivinhara a essência dos periguetismo de terrae brasilis, no conto Fanqueiros Literários, falando do Parasita: “O parasita ramifica-se e enrosca-se ainda por todas as vértebras da sociedade. Entra na igreja, na política e na diplomacia; há laivos dele por toda a parte”.
 
E vejam como Machado, no mesmo conto, vaticinou o periguetismo que tomaria conta da literatura (jurídica):
 
“O livro! Tem ainda o livro, sim. Meia dúzia de folhas de papel dobradas, encadernadas, e numeradas é um livro; todos têm direito a esta operação simples, e o parasita por conseguinte.”
 
Isso. Vamos todos para Estocolmo! O Nobel é nosso!
 
Post Scriptum: Confesso que tenho vontade de parafrasear Rui Barbosa para dizer — um tanto sem paciência — que, de tanto ver triunfar, em nossa sociedade estamental, as mediocridades[2] e os fabricantes de ficções (e nas redes sociais os idiotas perdem a timidez), fico constrangido e com vergonha de escrever alguma coisa mais sofisticada. Afinal, como dizia T.S. Eliot: “No país dos fugitivos,[3] quem anda na direção contrária parece que está...fugindo!”

[1] Claro que palavra é ação. E a linguagem é condição de possibilidade. Tudo isso já foi dito neste espaço. Aqui, na espécie, a crítica se direciona ao uso fetichista da linguagem e a uma certa pretensão “realista” entre palavras e coisas.

[2] O leitor Germano Valle Filho me manda texto de Ortega y Gasset (livro The Revolt of the Masses), no qual ele já previa, nos anos 20 do século XX, a mediocracia que tomaria conta de nosso mundo! Visionário esse Ortega y Gasset!

[3] Falta alguém querer corrigir T S Eliot. Ficaria assim: no país dos fugitivos e das fugitivas...! Bingo! (e Binga). De novo!

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