quarta-feira, 30 de outubro de 2013

A comunicação da prisão em flagrante ao juízo

Dentre as prisões cautelares, a prisão em flagrante recebe tratamento diferenciado da Lei, em razão da sua forma de imposição. É ela a única modalidade de segregação cautelar que não conta com decreto judicial prévio, pois é imposta no momento em que um crime é praticado ou momentos após, por agentes e autoridades policiais, ou, até mesmo, por qualquer pessoa do povo.
Dessa forma, ela passa a existir de fato, antes de existir juridicamente. Sua existência no mundo jurídico vai acontecer com a lavratura, pela autoridade policial, do auto de prisão em flagrante, nos termos dispostos no art. 304 do Código de Processo Penal. Uma vez documentada, a prisão deve passar pelo exame de legalidade através do juiz competente, pois, como se sabe, nenhuma privação de liberdade pode ser subtraída da análise do Poder Judiciário.

Para atender a essa sistemática, o caput do art. 306 estampa: “A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada”, com a redação dada pela Lei nº 12.403/2011, que reformulou todo o tema. Primeiramente, resta clara a intenção do legislador de ajustar as disposições da lei processual a respeito de prisão em flagrante ao que estabelece a Constituição da República, reproduzindo quase fielmente o contido no art. 5.º, LXII, da Carta Magna (o que já havia acontecido com a anterior redação conferida ao dispositivo pela Lei nº 11.449/2007).

A contar do momento da prisão, tem a autoridade policial 24 horas para encaminhar o auto ao Juízo competente, com todas as oitivas que dele devam fazer parte, segundo o § 1.º do artigo em estudo. Não é demais ressaltar que o prazo de que dispõe o delegado de polícia para encaminhar o auto ao Juízo é contado a partir do momento que a prisão é imposta e não a partir do momento da conclusão de sua lavratura, como, muitas vezes, se pensa.
Uma pergunta, contudo, surge da análise da redação do art. 306: impôs a lei duas obrigações, quais sejam, a comunicação imediata ao Juiz de Direito e ao Ministério Público e, posteriormente, a remessa do auto, no prazo de 24 horas a contar da prisão? Em outras palavras: deve-se primeiro comunicar a prisão e, depois da formalização do auto, encaminhá-lo ao Juízo competente? Muito embora a primeira leitura do dispositivo aponte para essa interpretação, havendo, inclusive, opiniões nesse sentido[1], parece-nos que não foi essa a intenção do legislador.
Entendemos que a comunicação imediata deve ser feita à pessoa da família do preso ou outra que ele indicar, incluindo seu advogado, se assim for manifestado por ele. Isso para dar notícia de seu paradeiro e para que se possa prestar-lhe a assistência que deve ter nesse instante, amparando-se na legislação vigente. A comunicação imediata ao Juízo e ao Ministério Público, quando da prisão, serviria apenas para literalmente “comunicá-la”, uma vez que o Magistrado ou o representante do parquet, nesse momento, não contariam com nenhum elemento para verificar a legalidade da medida, ou seja, seria atitude inócua.
Como dito anteriormente, o controle da legalidade da prisão em flagrante é feito posteriormente pelo Juiz de Direito. Sem o auto de flagrante em mãos, nada em termos práticos poderá ser feito, até mesmo porque o Juiz de Direito não poderá (nem deverá) dirigir-se à Delegacia de Polícia para acompanhar toda e qualquer lavratura de auto de prisão em flagrante de que tenha sido comunicado, mormente nas grandes cidades, onde o número de ocorrências atinge proporções assustadoras. Diga-se o mesmo em relação ao Ministério Público.
Somos do entendimento, portanto, de que a remessa do auto ao Juiz de Direito competente, no prazo de 24 horas, é suficiente para atender à exigência da “comunicação imediata” imposta pela lei e anteriormente já prevista na Constituição da República. Repita-se: somente com o auto formalizado é possível o controle judicial.

Nesse mesmo prazo, conforme consta da parte final do mesmo § 1.º, deve ser encaminhada cópia do auto à Defensoria Pública, caso o preso não tenha declinado o nome de seu advogado. Trata-se de louvável medida para conferir assistência jurídica na fase inquisitorial ao preso que não tenha advogado constituído e, principalmente, que não tenha condições de constituir um. Qualquer ilegalidade ou inobservância de formalidade poderá, de plano, ser argüida pelo defensor, sem prejuízo, é claro, do dever de ser rechaçada de ofício pelo Magistrado.
Cabe, então, nova pergunta: se a autoridade policial não encaminhar cópia do auto para a Defensoria Pública no prazo de 24 horas, poderá ser relaxada a prisão em flagrante? Entendemos que sim, pois essa espécie de custódia cautelar, por não contar com exame prévio de legalidade, está sujeita à observância irrestrita de todas as formalidades que compõem a elaboração do auto e a sua posterior remessa ao Juízo e também à Defensoria. Deixar de comunicar o órgão defensório é deixar de cumprir formalidade essencial, tal qual a ausência de entrega de nota de culpa ao preso, no prazo idêntico de 24 horas. Enseja, pois, o relaxamento da medida privativa da liberdade.
Não se pode deixar de comentar que o legislador, ao tornar obrigatória a comunicação mencionada, ousou quebrar uma longa tradição de nosso Direito, no que tange à participação de defensor na fase policial da persecução penal. Poderia, contudo, ter ousado um pouco mais, a nosso ver, tornando obrigatória a assistência de defensor quando do interrogatório policial, notadamente no bojo do próprio auto de flagrante, a despeito das dificuldades práticas que eventualmente poderiam existir. De qualquer forma, foi dado passo importante para a efetivação da defesa do indiciado, em momento crucial: o início das investigações.
Das modificações no Código de Processo Penal operadas pela Lei nº 12.403 /2011, sem dúvida uma das mais significativas foi a disciplina da atuação do Juiz competente, quando recebe o auto em comento. Cabe transcrever o dispositivo na íntegra:

Art. 310 [CPP]. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente:

I - relaxar a prisão ilegal; ou

II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou

III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.



Parágrafo único. Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do art. 23
do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação.
Salta aos olhos logo na primeira leitura a necessidade de fundamentação da decisão, seja qual for, colocando em liberdade ou mantendo a prisão do indiciado. Tal imposição tem por finalidade provocar do Juiz uma análise de mérito da prisão e não apenas verificar o aspecto formal do auto. É sabido que por muito tempo, no diaadia da Justiça Criminal, a prisão em flagrante era mantida pela simples verificação da legalidade do auto em si, muito embora a Constituiçãoda República já ordenasse o relaxamento imediato da prisão imposta ilegalmente (art. 5º, LXV) e muito embora também, por força da própria Constituição, a regra fosse a liberdade e não a sua privação (art. 5º, LVII e LXVI).

Aliás, a regra de que a prisão é a exceção em nosso ordenamento vem reforçada na nova redação do artigo 310, pois ela só será mantida se, além de ser legal (obviamente), não for possível substitui-la pelo instituto da liberdade provisória ou por alguma (s) das medidas cautelares diversas da prisão, elencadas no art. 319 do Código (ou conjugando-se as duas coisas). Assim, o Magistrado deve, em primeiro lugar, promover a libertação do indiciado, mediante as condições impostas pela Lei, e, só em último caso, se absolutamente necessário, manter a prisão.
No caso da necessária manutenção da prisão, cabe observar que a prisão em flagrante não pode perdurar mais até a sentença definitiva; tem ela, agora, duração pré-determinada. Isso porque ocorrerá a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, observados os requisitos constantes do art. 312, do Código de Processo Penal. Daí a razão de muitos, hoje, considerarem a prisão em flagrante uma medida “pré-cautelar” e não cautelar propriamente dita, pois ela apenas prepararia o decreto de uma medida cautelar, no caso a prisão preventiva.

A nosso ver, no geral, as disposições envolvendo o importantíssimo momento da comunicação da prisão em flagrante e a respectiva atuação judicial são salutares e constituem mais um elemento na busca e na criação de um processo penal garantidor dos direitos fundamentais da pessoa.

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