segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

PERDA DA POSSE DE IMÓVEL POR EXISTÊNCIA DE DÉBITOS TRIBUTÁRIOS

Introdução

 
Sob a égide do Novo Código Civil, foram introduzidas, dentre outras, inovações relativas ao instituto da propriedade, aqui entendida como “o direito que a pessoa física ou jurídica tem, dentro dos limites normativos, de usar, gozar e dispor de um bem, corpóreo ou incorpóreo, bem como de reivindicá-lo de quem injustamente o detenha”.[1]
 
De tais inovações, decorreram consequências relativas à aquisição e à perda da propriedade, especialmente à perda da propriedade imóvel através do abandono.
Ao prever o abandono como uma das hipóteses legais de perda da propriedade imóvel, vem o caput do art. 1.276 do Novo Código Civil dispor, in verbis :

Art. 1.276. O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais conservar em seu patrimônio, e que não se encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, 3 (três) anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições.
 
Sendo o abandono uma hipótese voluntária de perda da propriedade, leciona ORLANDO GOMES que para a concreção da hipótese fática mencionada “a intenção de abandonar é imprescindível, devendo resultar de atos que a atestem inequivocamente”.[2]
Ocorre, entretanto, que o § 2º do artigo em comento, assim dispõe:
§º 2º. Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este artigo quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais. (grifo nosso)
Dessa forma, introduziu-se no sistema jurídico a presunção invencível (jure et de jure) da intenção abdicativa nos casos em que, cessados os atos de posse, sobrevenha inadimplemento de obrigações tributárias por parte do proprietário do bem imóvel urbano.
 
Encontram-se contrapostos no supracitado artigo, de um lado, o direito individual de propriedade, e, de outro lado, o princípio da função social da propriedade, como meio indispensável à satisfação dos interesses públicos tutelados pelo Estado. A aparente contradição impõe que sejam ambos os institutos objeto de ponderação/sopesamento, com total observância dos preceitos constitucionais.
Diante de tal conflito, faz-se necessária a análise da presunção absoluta (jure et de jure) constante do dispositivo legal em comento, à luz dos preceitos esculpidos no texto constitucional pátrio, especialmente os da razoabilidade e da proporcionalidade, a fim de se verificar a sua validade com referência ao sistema posto pela Constituição Federal[3]
 

1.O princípio da supremacia constitucional

Na lição de ALEXANDRE DE MORAES, “o Poder Constituinte originário estabelece a Constituição de um novo Estado, organizando-o e criando os poderes destinados a reger os interesses de uma comunidade”.[4] Caracteriza-se, assim, o poder constituinte originário por ser inicial, ilimitado, autônomo e incondicionado.
 
Como produto da atuação incondicionada (onipotente) do poder constituinte originário, surge a Constituição, aqui entendida como a lei fundamental do Estado, um conjunto harmônico de normas jurídicas disciplinadoras da forma de governo, do exercício e modo de aquisição do poder, dos limites impostos ao Estado e dos direitos fundamentais do homem, em suma, dos elementos constitutivos e organizacionais do Estado.[5]
 
O reconhecimento da existência de um poder constituinte originário onipotente representa um verdadeiro pressuposto lógico do denominado princípio da supremacia da Constituição e de suas normas.
 
O supramencionado princípio consiste na atribuição de uma posição de destaque à Constituição, em face das demais normas que compõem o ordenamento jurídico, por ser a mesma a lei fundamental do Estado de Direito. Tem a Constituição a prerrogativa de conferir validade e legitimidade às normas jurídicas produzidas sob a sua égide.
 
Se é certo que KELSEN[6] atribuiu ao direito o caráter de moldura que abrigada as várias possibilidades de aplicação aptas a propiciar a solução para o caso concreto, com o mesmo rigor científico passou o pensamento pós-positivista a definir com contornos mais claros os limites da interpretação jurídica, afirmando que ao direito constitucional cabe definir a moldura que confere ao intérprete a margem de liberdade necessária à aplicação do necessário senso de justiça. O alcance desta liberdade estará sempre condicionado pelos diversos princípios que compõem o sistema jurídico, especialmente aqueles de índole constitucional.[7]
Nesse sentido se pronuncia LUÍS ROBERTO BARROSO ao afirmar que “toda interpretação constitucional se assenta no pressuposto da superioridade jurídica da Constituição sobre os demais atos normativos no âmbito do Estado”.[8]
 
A superioridade hierárquica da constituição, lei fundamental do Estado, desdobra-se em três aspectos básicos: (a) as normas constitucionais gozam de autoprimazia normativa, ou seja, recolhem os fundamentos de sua validade em si mesmas; (b) as normas constitucionais são normas de normas, representando a fonte e o fundamento de elaboração de todas as normas jurídicas infraconstitucionais; (c) finalmente, em consequência da referida supremacia da constituição, impõe-se a necessidade de conformidade de todos os atos estatais com a lei fundamental, sob pena de invalidade dos mesmos.[9]
O princípio da supremacia constitucional, consistindo em verdadeiro alicerce de interpretação jurídica, apresenta como duplo fundamento: a distinção entre poder constituinte (onipotente) e poderes constituídos (condicionados), e entre constituições rígidas e flexíveis.[10] A existência de um poder constituinte onipotente traz ínsita a ideia de superioridade do produto de sua atuação, ou seja, da Constituição do Estado. Nesse mesmo diapasão, a rigidez constitucional, caracterizada por um processo legislativo mais dificultoso para uma eventual proposta de modificação da Constituição federal, reafirma, de forma bastante clara, o mencionado conceito de superioridade jurídico-hierárquica, afinal as propostas de emendas à constituição haverão, necessariamente, que observar um processo legislativo mais dificultoso, inclusive no que concerne ao quórum de votação, do que aquele estabelecido para as demais espécies normativas previstas no próprio texto constitucional.[11]

2.A repersonalização do Direito Civil

O Direito Civil foi por muito tempo considerado o elemento nuclear da ordem jurídico-normativa. O surgimento do constitucionalismo, bem como o processo de codificação civil foram consequências do Estado Liberal e da afirmação do individualismo jurídico. Enquanto o constitucionalismo cuidou da delimitação política do Estado e dos limites de sua atuação, ao individualismo coube a tarefa de resguardo da esfera de autonomia privada conferida aos cidadãos, como forma de se assegurar o livre exercício de suas liberdades, especialmente no que concerne às relações de natureza econômica.[12]
As primeiras cartas políticas não traziam qualquer regulamentação das relações privadas, o que ficou a cargo do legislador infraconstitucional. À luz da referida normatização infraconstitucional construiu-se o conceito de igualdade formal, ou seja, a igualdade de todos perante a lei, não obstante a existência de flagrantes desigualdades materiais. Rompeu-se, dessa forma, com a ordem estatal anterior, fundada no privilégio de classes, sendo assegurada, ao menos no plano formal, a igualdade jurídica, que passou a integrar a categoria dos direitos da pessoa humana.[13]
 
Com a consolidação das liberdades individuais, aos poucos passaram a estar previstos nos textos constitucionais os direitos fundamentais, que posteriormente viriam a ser denominados direitos de primeira geração, ou como prefere Paulo Bonavides, primeira dimensão[14]. Tais direitos, desde sua afirmação, caracterizavam-se por determinar uma obrigação negativa do Estado frente à esfera de direitos de seus cidadãos, de forma que o poder público deveria abster-se da prática de qualquer ato que importasse em diminuição da liberdade individual, notadamente aquela relacionada ao patrimônio.
Como os direitos fundamentais representavam verdadeiros direitos de defesa, mantinha-se o Estado totalmente apartado das relações jurídicas privadas constituídas à luz dos preceitos de natureza civil, o que conduziu à hegemonia da classe burguesa sobre a imensa parcela da sociedade desprovida de qualquer poder econômico.
 
Como reação à exploração social legitimada pela igualdade meramente formal e pelo individualismo jurídico, surgiram os denominados direitos de segunda dimensão, assim entendidos aqueles dotados de conteúdo social, econômico e cultural. A introdução de tais direitos na ordem jurídica teve como fundamento o princípio da igualdade, que não mais se limitava ao aspecto meramente formal, buscando atribuir a necessária igualdade às situações materialmente desiguais. O Estado passou a obrigar-se não apenas negativamente (direitos de primeira dimensão), mas também positivamente (direitos de segunda dimensão), pois a sua atuação seria o instrumento necessário à realização dos direitos sociais, notadamente à saúde, educação, trabalho, etc.[15]
 
O modelo social e seus valores afastavam-se cada vez mais dos antigos conceitos que vigoraram sob a égide do direito civil do Estado Liberal. Nesse novo contexto as constituições passaram a recepcionar, além dos direitos fundamentais de defesa, a classe dos direitos sociais, o que importou em significativa mudança no modelo estatal.
 
Incumbido o Estado, agora denominado Estado Social, de propiciar a todos uma existência digna através da igualdade material, passou a atuar o mesmo na busca pela satisfação dos interesses públicos, podendo inclusive impor limites ao exercício abusivo ou desproporcional de direitos individuais, como a autonomia contratual e a propriedade.
 
No Estado Social, aqui entendido como “todo aquele que tem incluída na Constituição a regulação da ordem econômica e social”[16], os institutos do Direito Civil, antes considerados intocáveis, passaram a dever obediência às normas constitucionais que tutelavam os direitos sociais. Dessa forma, retirou-se a hegemonia do direito privado para atribuir-se à constituição a condição privilegiada de núcleo fundamental de toda a ordem normativa. A interpretação jurídica, que na concepção liberal partia do Código Civil até atingir-se a norma a ser interpretada, passou a iniciar-se da constituição, pois nela estava definida toda a organização política do Estado, além de estarem previstos os direitos fundamentais, inclusive os concernentes às relações de natureza privada.
A evolução do constitucionalismo teve o condão de conferir lugar de destaque à pessoa humana, impondo a tutela de sua dignidade, superando em grande medida a concepção excessivamente patrimonialista dos códigos civis. Nesse sentido leciona PAULO LUIZ NETTO LÔBO que:
 
A repersonalização reencontra a trajetória da longa história da emancipação humana, no sentido de repor a pessoa humana como centro do direito civil, passando o patrimônio ao papel de coadjuvante, nem sempre necessário.[17]
 
Embora as constituições tenham avançado no sentido de incluir no rol de direitos fundamentais também os direitos de natureza social e econômica, bem como de garantir de forma bastante ampla a dignidade da pessoa humana, muitos códigos civis permaneceram inalterados e, em consequência, em flagrante contradição com os novos princípios inseridos, expressa ou implicitamente, nos textos constitucionais dos diversos Estados Sociais de Direito.
 
No Brasil, por anos conviveram a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 1916. A primeira introduziu no ordenamento jurídico pátrio o conceito de Estado Social de Direito, trazendo
dispositivos condizentes com o novo modelo estatal, inclusive no que concerne às relações de ordem privada. O segundo, entretanto, impregnado de conceitos superados pela nova ordem jurídica, exigia a árdua tarefa de adequação interpretativa entre os preceitos civis e constitucionais. Assim, não raras vezes se fazia necessária a aplicação direta da constituição a certas relações jurídicas, tendo em vista a sua supremacia frente às normas constantes do antigo código civil.
 
Com o advento do Código Civil de 2002, muitas destas contradições foram superadas, afinal o referido diploma legal adotou diversos institutos já anteriormente previstos pela Constituição de 1988, tais como a função social da propriedade e do contrato e a igualdade jurídica, material e formal, entre os cônjuges (ou companheiros) e entre os filhos, sendo este rol meramente exemplificativo.
 
Entretanto, não obstante os avanços do novo Código Civil em busca de uma maior adequação com os preceitos do Estado Democrático de Direito, permanecem ainda válidas as conclusões decorrentes da supremacia das normas constitucionais, bem como da chamada repersonalização do direito civil, afinal, como toda legislação infraconstitucional, o Direito Civil deve ser interpretado segundo os princípios insculpidos na Carta Magna.

3.A proporcionalidade como limite à discricionariedade legislativa

A discricionariedade, aqui entendida como uma determinada margem de liberdade, fundada em critérios de conveniência e oportunidade, atribuída ao agente estatal competente para a prática de um certo ato, se apresenta em maior ou menor grau nas três esferas de poder, segundo a função precípua de cada um deles.
 
Como ao legislativo cabe a tarefa de criação de normas destinadas a reger relações jurídicas, o grau de discricionariedade a ele atribuído se apresenta mais marcante do que nos outros poderes estatais. Assim, a liberdade inerente ao exercício da função legislativa é mais ampla, sendo limitada apenas pelas regras e princípios constantes da Constituição Federal.[18]
 
O processo de criação de normas jurídicas pós-constituição deve total observância às normas de rocesso legislativo, constitucionalmente estabelecidas e, por outro lado, as matérias constantes de tais diplomas legais precisam, sob pena de invalidade, guardar consonância com o conteúdo material da Constituição. A referida necessidade de conformação formal e material decorre do fato de ocupar a Constituição Federal o ápice do ordenamento jurídico, servindo de fundamento para toda e qualquer norma posterior a ela.
 
Na tarefa de adequação da produção normativa com os preceitos constitucionais, adquire inegável relevância a proporcionalidade, decorrente do conceito de Estado de Direito, sendo a mesma modernamente caracterizada como um limite à liberdade de atuação da Administração Pública, tanto na prática de atos administrativos, quanto na edição de atos normativos, sendo estes últimos objeto da função precípua do legislador.
 
A utilização da proporcionalidade como medida da discricionariedade se justifica pelo simples fato de ser o poder atribuído à Administração Pública um poder instrumental, subordinado à persecução de uma finalidade pública. Nesse diapasão, bastante esclarecedora a lição de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, in verbis:
 
Toda demasia, todo excesso, toda providência que ultrapasse o que seria requerido para – à face dos motivos que a suscitaram – atender o fim legal, será uma extralimitação da competência e, pois, uma invalidade, revelada na desproporção entre os motivos e o comportamento que nele se queira apoiar.[19]
 
Estando os atos normativos também sujeitos à proporcionalidade, deve-se proceder à análise dos mesmos à luz das suas sub-regras, quais sejam: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.
 
Na adequação do ato normativo deve-se analisar se o mesmo constitui medida idônea à satisfação do interesse público que o motivou, ou seja, se o meio utilizado contribui para a realização do fim almejado. Caso inexista a contribuição para a consecução da finalidade pública, o ato normativo já padecerá de contrariedade à ordem constitucional.
 
O segundo elemento a ser analisado diz respeito à necessidade. Deve-se questionar se a medida adotada era realmente exigível, ou seja, se não havia outro meio igualmente apto à satisfação do interesse coletivo colimado e menos oneroso aos direitos individuais. Portanto, o legislador, em sua liberdade política de conformação, deve limitar-se à escolha do meio estritamente necessário, caracterizando-se qualquer eventual excesso como uma extrapolação do poder que lhe fora atribuído sob a forma de competência.
 
A última das sub-regras da proporcionalidade a que deve ser submetido o ato normativo consiste na proporcionalidade em sentido estrito. Tal instituto determina a verificação dos custos e benefícios da medida adotada, ou seja, das vantagens e desvantagens decorrentes da edição do ato normativo frente à satisfação da finalidade pública almejada e sempre à luz dos direitos individuais.
 
Para ser legítima a distinção de uma situação face outras, faz-se mister que se analise o critério discriminatório, a relação lógica abstrata do tratamento normativo previsto com o ordenamento jurídico e a harmonização concreta de tal lógica com os axiomas constitucionais. A norma deve estar em consonância com estes três aspectos para que não venha a padecer de desigualdade ou ainda desproporcionalidade.[20]
 
Isso posto, o princípio da proporcionalidade constitui verdadeiro meio de garantia da conformidade dos atos normativos em geral com a Constituição Federal, devendo o Poder Judiciário estar sempre atento à correção de eventuais abusos estatais.

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