quinta-feira, 19 de março de 2015

“Eles não sabem o que fazem”

Magali Cunha, em O Globo
Um dos testemunhos mais marcantes de evangélicos brasileiros que sofreram a repressão da ditadura militar é o de Manoel da Conceição Santos. Nascido em 1935, no interior do Maranhão, ele está entre os trabalhadores rurais que sofrem nas mãos dos donos de terras. Tornou-se membro da Igreja Assembleia de Deus, inspirado pela vida comunitária, a solidariedade e a valorização dos pequenos. Logo se tornou professor da Escola Bíblica Dominical e auxiliar do pastor. Também aprendeu com o Movimento de Educação de Base (MEB) sobre o sentido das injustiças que sofria e sobre seus direitos como trabalhador. Por isso, exerceu sua vocação cristã fundando o sindicato dos trabalhadores rurais em Pindaré-Mirim. Manoel se tornou um grande líder camponês do Maranhão.
Com o golpe civil-militar de 1964 veio a perseguição. Em 1968, policiais chegaram atirando em uma reunião no sindicato e Manoel foi ferido na perna direita. Depois de seis dias na prisão, sem tratamento, parte da perna gangrenou e teve que ser amputada. Sindicalistas e outros militantes levantaram recursos que garantiram o tratamento e a colocação de uma prótese, em São Paulo. Livre, retornou a Pindaré e à causa da justiça. Preso novamente, foi sequestrado por agentes do DOI-CODI e levado para o Rio de Janeiro. Na “antessala do inferno” do quartel da Tijuca (nome dado pelos próprios agentes), a perna mecânica foi arrancada e ele foi colocado nu na “geladeira”, a solitária, onde era tratado literalmente a pão e água e torturado. Entre idas e vindas ao hospital para ser mantido vivo, além das práticas convencionais como choque elétrico, pau de arara e espancamento, o sindicalista pentecostal foi pendurado ao teto e teve o órgão sexual preso por um prego em cima de uma mesa. Manoel só saiu vivo dali para ser julgado, graças à campanha feita no Brasil e no exterior contra o seu sofrimento. Igrejas católicas e evangélicas da Europa e dos Estados Unidos protestaram contra a prisão e desaparecimento do sindicalista, enviando cartas ao Presidente Médici.
Em 1972, Manoel foi condenado e cumpriu três anos de prisão. Quando libertado, foi hospitalizado em São Paulo, com a ajuda de D. Aloísio Lorscheider, D. Paulo Evaristo Arns e o pastor presbiteriano Jaime Wright. Por causa da tortura, o homem urinava através de sonda e ficou impotente por anos. Meses depois, a casa onde Manoel estava foi invadida por policiais, que o levaram para o DEOPS, onde sofreu novas torturas. Na ocasião, o Papa Paulo VI enviou telegrama ao Presidente Geisel exigindo a libertação do sindicalista evangélico. No final de 1975, ele foi finalmente solto e teve o exílio como salvação. Retornou ao Brasil com a anistia de 1979. Aos 80 anos, Manoel da Conceição continua dando testemunho de sua vida e de sua fé no Deus da verdade e da justiça.
Ao assistir às cenas e ler postagens em mídias sociais referentes às manifestações políticas deste 15 de março, não pude deixar de pensar em Manoel da Conceição e nos tantos outros como ele. Cristãos que trazem na pele e na alma marcas da luta pela democracia e pela justiça. Como se sentem ao verem os pedidos por intervenção militar e volta da ditadura que ecoaram clara, nítida e fortemente entre as multidões? E a exaltação àqueles que prestam culto a esse terrível passado recente? Imagino que estejam repetindo a oração de Jesus, que também foi torturado: “Pai, perdoa-os, porque não sabem o que fazem”.

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